DELTA

de Pinto (25/9/12)


com um copo de cerveja
já a voz não me fraqueja

com dois copos de vinho
não me sinto tão sozinho

com três copos de licor
sinto um verdadeiro amor

e com quatro de bagaço
ninguém sabe aquilo que eu faço

DEZ INVERNOS

de Naík Chagas (18/9/12)


em que verso ficaste e 
te quedaste muda quando
o tempo te levou para
junto deles

que canção cantavas tu
quando as asas te cercaram

e elevaram sobre
os céus

que murmúrios segredavas
às flores de tom nocturno
para que te desvendassem
a semente

sim conta-me os
pormenores da tua voz
ao viajares para lá de nós
sorrindo sempre

HELIODORO

de Naík Chagas (11/9/12)



com a maior delicadeza
o sol mudou a minha casa
e forçou as portas com o Verão

o céu deixou nuvens pelo tecto
e a tua figura opaca
deixou a luz entrar um pouco rasa 


e num impulso a escuridão
ganhou o jeito impune e recto
de plantar sonhos sobre a mesa

ZEN PARA ADULTOS


de Miguel Jesus (4/7/12)


A lição oriental
desse oriente a oriente do oriente
diz-nos que a felicidade
não é um nome mas um verbo

e que verbo como tal
se conjuga diariamente

QUE INTERESSA DIZER

de Naík Chagas (31/7/12)


que interessa dizer que a
raiz dos pássaros são asas
ou que a desolação dos dias frios
chove nas praças do vento
que interessa saber da
geometria táctil das casas
ou das máscaras silentes 

que da vida fazem Entrudo
que interessa cantar os
grãos cinzentos do tempo
senão para dizer que tudo isto
fala mais que isto tudo

DAS RAÍZES

de Naík Chagas (24/7/12)


a raiz dos pássaros está nas asas
que os elevam para mais longe
até aos promontórios do silêncio
de onde em fumo observam:
a raiz dos homens

a raiz dos homens está nos olhos

e quer tragam ou não a cegueira
de outros mundos
sempre pela lua assinalados
se hão-de inclinar sobre:
a raiz das árvores

a raiz das árvores está nos astros
que em ecos cantam o signo escuro
de todos os impérios derrubados
no tempo em que reinava:
a raiz do fogo

a raiz do fogo está no luto
das marés feitas de vento e de giesta
onde a branca luz do tempo
tem de Beçalel a mão perdida
(que sem saber esculpiu:
a raiz dos pássaros)

OS HOMENS DA CIDADE

de Afonso Lisboa (17/7/12)


os homens da cidade pensam muito
e por vezes sonham com o campo à terça-feira
ou fazem amor angustiadamente
nos seus carros e sofás e prateleiras
têm glórias que nem lembram ao diabo
e comem sentados com a posse das freiras
por saberem que a morte nunca é coisa natural

ah os homens da cidade dormem mal
com seus casacos correrias e caçadas
juntam as mãos às mãos da noite e da calçada
ou dessa pedra mais cinzenta e mais suada
que as mãos dos homens que eles não foram lá deixaram
porque até as estrelas lhes parecem tão estrangeiras
que a conquista de cruzar ruas cruzadas
é para os homens aventura tão desmesurada
como partir e ir a pé além-fronteiras
(fronteiras que os homens da cidade nunca amaram)

os homens da cidade pensam muito
muito mais do que quem está enterrado
muito mais do que os mortos estando em festa
mas invejam os reis antigos e as promessas
que suas leis à lei da espada conquistaram

sim como eles dormem os homens da cidade a santa sesta
do meio-dia à meia-noite dos sentidos
e falecem como quem sente a madrugada
ou como quem troca os gritos por gemidos
por nas àrvores ver só os demónios da floresta
sim sim homens disfarçados de homens ou de cidades
procurando a sua singular máscara de ferro
para sozinhos arderem frente à voz da neblina
cuja cor e ardor aos homens faz lembrar
o torpor com que na cidade dobram cada esquina

os homens da cidade pensam muito
e até na hora que imaginaram tristemente
de levar a própria dor a visitar o seu enterro
conseguem esquecer o uivo que a loucura neles atinge
(para que a morte não possa assim logo acordar
pois a morte tudo pode de repente
e os homens da cidade morrem sempre muito lentamente)

cada um finge o que pode cada um pode o que finge

S/ TÍTULO

de Afonso Lisboa (10/7/12)


Imóvel o cão está no meio da praça
Poucos sabem se está morto ou somente a descansar
(Ou sou eu que neles ponho a disfarçar
Este incómodo duvidoso que o trespassa?)

CONJUNÇÃO

de Sara Guerra (3/7/12)


E se hoje olhas novas
não rendidas
à luz directa e vã
que te esperava

é porque abriste ao sono
e por um dia
à aurora preferiste
a desfolhada.

O OLHAR DOS VIVOS

de Miguel Jesus (26/2/12)


o olhar dos vivos não é
mais que um problema
escondendo
o que o olhar dos mortos desvenda
no poema

NOVALIZAÇÃO

de Pinto (19/6/12)


Toda a linha
é um eixo do universo

E ainda assim que diz meu verso
de em si mesmo ser lua
a tempestade o sol ardente?

Diz que mente.

ODE

de Pinto (12/6/12)


as palavras dos sábios ecoam
as palavras dos sóbrios escoam

O TEMPO DAS ÁRVORES


de Naík Chagas (5/6/12)


qual o tempo das árvores?
e a largura do seu pranto?
qual a voz com que sorriem
e a mão que pousam com
ternura em nossos escalpes
murmurando: correm tanto.

THE CHOICE / A ESCOLHA


de W. B. Yeats / versão de Miguel Jesus (29/5/12)


The intellect of man is forced to choose

Perfection of the life, or of the work,

And if it take the second must refuse

A heavenly mansion, raging in the dark.

When all that story’s finished, what’s the news?

In luck or out the toil has left its mark:

That old perplexity an empty purse,

Or the day’s vanity, the night’s remorse.




Por um instante, a perfeição de cada um

Há-de escolher entre a obra e a própria vida

E há-de gritar que só é são o suicida

E até da fome fará seus hinos ao jejum



Assim seguirão sempre lado a lado

A vida imensa que é uma obra incompleta

E a obra, que de vivida se faz fado
Ao completar também a vida em sua meta



E depois há-de soprar o vento sobre a terra

Até que tanto pés como pegadas sejam vento

E tanto a paz como a guerra sejam guerra

Na paz eterna do eterno esquecimento

FLÂMULA

de Sara Guerra (22/5/12)


Ontem respondeste com segredo
à distância que pelo mundo foi imposta

e que importa se te moves só por medo
ou que o tempo sempre ouça tua esperança

se sei que ontem respondeste com segredo
ao teu sonho de sorrisos de criança

PROCURA-ME NESTA FRASE

de Naík Chagas (15/5/12)


procura-me nesta frase inominável sabendo que não
encontrarás senão o labirinto de um coração humano

do sol onde alto habitarei hei-de te olhar e de te sorrir
com a cabeça de dragão que só pelo vento reconheces

faz da minha a tua inominável frase e tece tu este jogo
infindo que se oculta e revela ainda novo a cada passo

para que quando eu do sol descer uma vez mais possa
também olhar para cima e aí ver teus sorrisos ancestrais

TRATADO DE LISBOA

de Afonso Lisboa (8/5/12)


não tenho posições para a poesia
nem pretendo que ela as tenha para mim

também não espero que deus tenha
olhos verdes

À TERÇA-FEIRA

de Afonso Lisboa (1/5/12)


Na terça-feira vi mais seis pássaros mortos
Todos os dias o céu cai já sem fazer perguntas
E eu, que às terças sou tão curto de certezas,
No telhado abri as asas e fechei o guarda-chuva.

THAT IS THE QUESTION

de Pinto (24/4/12)





Porque não o distingue
Um inglês não poderá saber
(A menos que seja bilingue)
Que estar também é ser

PRIMAVERA


de Sara Guerra (17/4/12)




Sei da cor a viva forma
em que meus olhos sempre
dormem com a esperança
dos que um dia se dirão.

ALL THINGS CAN TEMPT ME / AS TENTAÇÕES DE SAN ESCRIVÃO

de W. B. Yeats / versão de Miguel Jesus (10/4/12)


All things can tempt me from this craft of verse:
Onde time it was a woman’s face, or worse –
The seeming needs of my fool-driven land;
Now nothing but comes readier to the hand
Than this accustomed toil. When I was young,
I had not given a penny for a song
Did not the poet sing in with such airs
That one believed he had a sword upstairs;
Yet would be now, could I but have my wish,
Colder and dumber and deafer than a fish.


Tudo é tentação para que me afaste da poesia
Tanto os olhos das mulheres como os das aves
Tanto o vento dando voz às folhas soltas
Como as pequenas coisas de cada dia-a-dia
Que em mim se tornam tão sérias e tão graves.
Tudo me faz sair e andar às voltas
Para ver o mundo e vislumbrar a melodia
Que se esconde em cada esquina da razão
Entre aquilo que me tenta e quanto tento.
Sim, tudo é tentação para que me afaste da poesia
Mas condena-me ainda mais a profunda tentação:
De tentar sempre traduzir a voz do vento

LÁ FORA

de Naík Chagas (3/4/12)




Lá fora a tempestade já partiu
E assim como a fúria se sumiu
Também meu corpo em breve irá beijar o vento

Nada finda que um dia não regresse
E de furor em furor a vida esquece
A tempestade do mais fundo esquecimento

ECO

de Pinto (27/3/12)




É pela tua voz que eu escrevo
é por ela que estes versos não são meus
Pois só a tua voz em mim ouve a tua voz
e o que eu disse e desdisse sob os céus
é que a minha para voz não tem elevo
e que este corpo para os céus será veloz
senão fizer da folha plana o seu relevo
nem dos versos e do corpo verbos teus

MORRER EM SETE LAGOAS

de Afonso Lisboa (20/3/12)




Havia festa lá no largo por dois dias
e era hábito juntarem-se homens
para caçar cabras à corda

Na festa as mulheres serviriam
o animal entre alho e vinho branco
mesmo em frente da igreja

A rocha estava húmida
e junto ao abismo a corda ficou laça
A cabra nem sorriu nem se queixou

E depois de três dias de resgate
em que os homens das cordas e das asas
voaram sobre a morte como pássaros

as mulheres serviram o teu corpo
mesmo em frente da igreja
Entre palavrões uivos e lágrimas

RUNEMAL

de Naík Chagas (13/3/12)




mais elevados 
do que 
os meus desígnios

existem
somente
os meus desígnios

(na verdade
mais rasteiros
que os meus desígnios)

tive sonhos
tão imensos
que eram eu

CASSANDRA

de Pinto (6/3/12)



Passei por uma senhora na avenida
que frente ao espelho se erguia contra a hora
em que cega fora trazida a esta vida
E ao seu reflexo cego que a não via
ela atirava com fervor um “Vai-te embora!”

E muito mais do que a loucura ela dizia.

BERESHIT

de Miguel Jesus (28/2/12)




A cada instante nasce a pergunta novamente
interrogando consecutivamente sempre
se a minha vida é de facto a minha vida
ou se os caminhos que escolhi ou achei que fui escolhendo
não estiveram a defraudar constantemente
uma vontade oculta que mais ou menos definida
pelo menos eu desconhecia
A cada instante está outra vez nascendo
a pergunta nascente como nasce o dia
interrogando o pensamento consecutivamente
sobre aquela porta que vi e que não sei se era a porta certa
ou se era uma porta que era porta mas não era minha
ou se era uma porta por onde só passava o vento
ou talvez uma porta que já estava aberta
ou que pelo menos ao ser aberta não era a minha mão que a abria
Interrogo-me se não bati à minha porta
se não a abri se não entrei
nessa porta que no fundo esteve lá sempre só para mim
por ser eu quem nela vê quem é
e por ser eu quem nela vê quem entra
por seu eu e ter sido só eu que lá cheguei e hesitei
e por ter através dela vislumbrado uma luz que escureceu
e por nela ter visto o que não via
Ainda que saiba não poder falhar o meu caminho
por nele seguir nele sempre sozinho
até que chegue ao desconhecido fim deste desvelo
interrogo como posso nele estar certo se meu ele é somente
como posso nele escolher se escolher quem sou é sê-lo
e como posso interrogá-lo se ao existir em mim sou eu
Interrogo se tudo aquilo que é ser gente
gente que se lembra e que se esquece e pouco aprende
e que em cada gesto desafia a transparência
não é na verdade um exercício de estranheza
que vive só de interrogar o que é menos transparente
até que nasça a pergunta mais uma vez e sempre
interrogando se essencialmente eu sou esta existência
da qual faz também parte a incerteza
ou se a cada gesto incerto esta existência se transcende

GARÇA BRANCA

de Naík Chagas (21/2/12)




Para onde vais garça branca sem rezar?
Para onde vais e onde aspiras soçobrar

que o teu silêncio esvoaçante
não tem pressas nem tem preces

e o tempo da terra não te toca até que te quedes
muda e imutável sobre a serra

Onde não pousas nem sequer para descansar
Pois ao passares sempre só com deus te medes

POEMA

de Sara Guerra (14/2/12)




que voz trará à vida
o que é caminho,

que grito é esse que buscas inscrito
se a pedra desde sempre to tem dito

que verdade queres que à luz se desça
se as aves nunca te estranharam
(e até os seus ninhos te caem na cabeça)

em que campos queres tu que teus filhos cresçam
se tudo quanto floresça é teu já
nem por pertença, mas por justiça
anterior a todo o tempo, levada ao extremo
da ternura pela coragem clara e livre da loucura.

(que tiranos queres pois se confessem
se a mentira só se aninha em quem a aceita)

que denúncia esperas ser-te prometida
se a revolta te chama há muito pelas ruas.

(mostra-me
em que canto esse sonho não exista)

(s)e ainda que a Primeira
fosse a última Palavra:

Inventaria para ti
o novo mundo –

Em sangue escreveria
minhas mãos nas tuas.

DÍPTICO PARA COLORIR

de Pinto (7/2/12)




I

As saias das aias
são como raias azuis
As das princesas?
São falhas de luz

II

O princípio dos príncipes é o precipício
o das donzelas é o dom das querelas
o dos dragões é dragar sentinelas
sem sentir o sabor da virtude ou do vício
Lenta anda a lenda sua lenga-lenga é ofício

FALEMOS DE BOMBAS

de Afonso Lisboa (31/1/12)




Falemos de bombas
e daqueles que ainda sonham transformar a saciedade
que as bocas e as mãos erguem em formato de estandarte
Falemos das farpas e das castas que aceitamos
e escondemos a caminho do silêncio
Falemos dos bodes da corrupção ciclicamente necessários
e da guerra que lá longe mata tantos
e das faces pálidas explorando tudo e todos
(e do roubo que cada um pratica só consigo)

Falemos das conversas de café que não existem
dos correios da espionagem universal
e da sonolência sempre sempre tão presente
Falemos das mil faces por segundo procuradas
(que face procuramos e ainda procuramos?)
inventemos milícias de quimera
e gestos públicos de nojo praticados com horário
antes da hora obrigatória das plantas

Falemos da horta que não temos e que mais urge
da água que bebemos só por vício
do ar privado que pagamos com dois versos
da comida feita gasolina
e da gasolina que engolimos
enquanto sofisticados com a voz a combatemos
Falemos de violência e de falta de esperança
dos filhos não-nascidos e da peste erradicada
dos séculos que se cruzam e do dia interminável que aí vem
(plantemos luzes) com a morte do silêncio
(e colhamos sons de bala)

Falemos de assaltos e medidas radicais de segurança
frente à fúria que a natureza dirigiu contra a nossa natureza
Falemos da morte que não vem nunca
e da fome que já esquecemos
por trincarmos só o pão dos desiludidos

Falemos falemos. Depois rezaremos.

AS QUATRO INSTÂNCIAS DO INSECTO

de Miguel Jesus (24/1/12)



mais tosca do que se faz anunciar 
pelo chão passeia a mosca
escapa sem saber o que é escapar

traz do tigre o fato e do sol o olhar
hábil quando salta quando desliza ou se enrosca
anda o gato a ver a mosca
que se escapa sem saber o que é escapar

fazendo de tudo isto tinta negra
aprisionado pelo verso que me embosca
escapo em poemas o que não posso no olhar
pois sentado também eu vejo essa mosca
e vejo o gato a ver a mosca a querer escapar

e depois de tudo isto a imagem fosca
de um outro ser que se esconde em minha capa
de um deus que não tem olhos nem tem mapa
mas que me vê a ver o gato a ver a mosca
e vê o gato a ver a mosca
e vê a mosca que se escapa
Amigos,

Desde 24 de Janeiro que a GALATEIA está no grande livro das faces!
Se quiserem conhecer-nos nessas paragens, sigam esta ligação:
http://www.facebook.com/profile.php?id=100003403791235&sk=wall

Nessa altura começámos também a abrir portas e gavetas
e desde aí que todas as semanas vos damos a conhecer um novo inédito.

A partir de agora, o UM POEMA À TERÇA-FEIRA estará também presente aqui no blog.
Esperamos que gostem.

INÊS MORRE

GALATEIA II
Peça de teatro de Miguel Jesus. Numa criação do Teatro o bando, este texto foi representado pela primeira vez a 4 de Março de 2011 no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. Desenvolvido em co-produção com a Fundação Centro Cultural de Belém e em parceria com o Centro Cultural Vila Flor, o Teatro Virgínia, o Cine-Teatro de Estarreja, o Teatro Municipal de Bragança, o Teatro de Vila Real e o Teatro Municipal da Guarda, o espectáculo contou com encenação de Anatoly Praudin, coordenaçaõ artística de João Brites, composição musical de Jorge Salgueiro, espaço cénico de Rui Francisco, oralidade de Teresa Lima, figurinos e adereços de Clara Bento, desenho de luz de João Cachulo e apoio à dramaturgia de Odette Bereska. Constituíam o elenco: Miguel Borges (Pedro); Estêvão Antunes (Coelho); Ivo Alexandre (Pacheco); Sara de Castro (Teresa); Susana Blazer (Inês); Horácio Manuel (Afonso); e Helena Afonso (Corifeu).

Encomendas online (revistagalateia@gmail.com). 80 p. / 5€ / Prefácio: Anabela Mendes / Apoio: Teatro o bando / Capa: Raquel Belchior / Execução Gráfica: Pedro Raposo Marques


CORO
Diz-nos, diz-nos, ó história esquecida
Quem compra com a morte o que paga com a vida
Diz-nos, diz-nos, ó cidade demente
Qual o sangue culpado, qual o sangue inocente
Diz-nos, diz-nos, ó pátria maldita
Quanto sangue em ti chora, quanto sangue em ti grita
Diz-nos, diz-nos, ó terra tão santa
Quanta morte em ti grita, quanta morte em ti canta
Diz-nos, diz-nos, ó vil escuridão
Se trazes a morte na voz, se trazes a morte na mão
Diz-nos, diz-nos, ó sombra vizinha
Quem só depois de ser morta conseguiu ser rainha
Diz-nos, diz-nos, ó história esquecida
Quem compra com a morte o que paga com a vida

.........................................................................


PEDRO
Não há maior obra... Escurece. Mais um dia há-de morrer e de sangrar a sua luz. Mais um dia há-de nascer para a escuridão e nunca o sangue dos dias saciará este mundo. Cada dia cedemos o nosso corpo a um outro dia, cada noite anuncia sempre em nós uma outra noite. Dormir, esquecer, apagar? Quem habitará a noite funda? A morada das sombras? O rei, o escravo, o súbdito leal? Aquele que comete crimes? Aquele que morre carregado de inocência? O que pratica a justiça cegamente? Ou o que teme a justiça mais violenta? E a que se chama a violência da justiça se a justiça não conhece a medida dos actos nem a medida dos cortes? Todos havemos de habitar a mesma sombra. E só a sombra há-de saber qual a sua hora.

(Desiste. Silêncio.)

Entra Teresa.

(Teresa abre a arca, retira Inês nua e limpa-a.)

Dizem que o rei vive de noite e que se alimenta do sangue violento da justiça. Mas o que é o homem para o tempo da terra? Entre a noite e o dia quem os pode distinguir? Onde começa um e acaba o outro que eu sempre os vejo de seguida? E o sangue da justiça? Que valor tem? Quanto vale um rei, um prisioneiro, ou qualquer outro corpo? Todo o herói acaba sempre na poeira, todas as vozes são levadas pelo vento e pouco tempo a cinza toma a forma da mão. Vivo ou morto, um corpo é um corpo somente. Para a história o que são as dores dos homens? Serão suas conquistas mais que sombras? E o que é o sangue senão sonho?

(Silêncio.)

Já acordou?

TERESA
Ainda dorme.


(excertos, páginas 16, 54 e 55)

PRIMEIRA ESTRADA

GALATEIA I
Está à venda o primeiro livro de Naík Chagas. Encomendas online (revistagalateia@gmail.com).
104 p. / 7€ / Capa: Miguel Jesus / Execução Gráfica: João Campos e Sónia Almeida


aspira ao que podias ter sido mais
sabendo que nada mais podias ter sido
porque foste a voz
que os deuses deram
ao teu nome

e se pensaste que te estava guardado
o silêncio
aquele que nunca tu silenciaste
lembra-te
que também o grito será breve
face ao vento
e grita
com essa força que guardaste
sem procurares o eco
da tua voz perdida
mas sorrindo ao vento
que nisso não se modifica
(ou talvez se modifique
somente na tua medida)

e então
esse grito entoará a eterna melodia


(excerto, página 71)